Produtores rurais do "arco do desmatamento" recebem pagamento por serviços ambientais

 

Recursos da ‘safra extra’ vêm da venda de selo pela Plataforma Tesouro Verde, do programa de sustentabilidade Brasil Mata Viva

 

 A conservação da floresta nativa rende uma "safra extra" para produtores rurais (Foto: Divulgação/André Dib-WWF)

O pagamento por serviços ambientais já é uma realidade para 228 produtores rurais de Rondônia, Amazonas, Mato Grosso e Pará, na região que é conhecida como “arco do desmatamento”. Uma plataforma digital com tecnologia de blockchain criada em 2018 pelo programa de sustentabilidade ambiental Brasil Mata Viva (BMV) garante renda anual ao produtor pela conservação de florestas nativas.

Os recursos dessa “safra extra” vêm da venda do Selo Tesouro Verde para empresas, instituições e pessoas físicas interessadas em compensar suas “pegadas ecológicas”, ou seja compensar o volume de carbono equivalente que emitem na atmosfera com suas atividades.

Em dois anos, passaram de 23 para 179 o número de empresas de pequeno, médio e grande porte que obtiveram o selo, que precisa ser renovado anualmente. O programa do BMV foi alavancado pelas parcerias com o governo do Amapá, banco Santander e o Sebrae do Mato Grosso. Tem cinco núcleos ativos, sendo três no Mato Grosso, um no Amapá e um em Rondônia. Outros cinco estão previstos para em Goiás, Bahia, Mato Grosso do Sul e São Paulo.

A CEO da BMV, a economista Maria Tereza Umbelino de Souza, diz que o sistema ainda carece de escala para remunerar bem os participantes, mas, a aprovação da Lei 13.986 no ano passado, que reconheceu a agricultura de floresta como passível de conservação, ajudou a impulsionar a plataforma.

Ela explica os passos necessários para a obtenção do selo de sustentabilidade. Primeiro, os agricultores aderem ao programa e assinam um compromisso de preservar e proteger a floresta nativa pelos próximos 25 anos. A equipe faz o inventário da área, aplicando metodologia validada por cientistas da Faculdade de Ciências Econômicas da Unesp e registrada na ONU (Organização das Nações Unidas).

Uma empresa terceirizada audita todo o processo. Na sequência, o inventário é registrado em blockchain e a calculadora da Plataforma Tesouro Verde converte o volume de recursos naturais consumidos pelo comprador em quantidade de UCSs (Unidades de Crédito de Sustentabilidade) necessárias para garantir a certificação. Cada UCS equivale a 1 tCO2e (tonelada de dióxido de carbono equivalente).

Feito o pagamento, a transação é registrada em blockchain e o crédito é retirado do mercado. O comprador recebe então o selo com informações sobre a fazenda que gerou o crédito, localização das áreas preservadas e o detalhamento do que está sendo conservado entre vegetação, fauna, flora e recursos hídricos. Ao final do processo, o titular do crédito, que geralmente é o produtor rural, recebe o pagamento.

Na plataforma, cada UCS custa hoje R$ 180,31. Há três anos, quando o selo começou a ser implantado no Amapá, valia R$ 77,60. Segundo Maria Tereza, o tíquete médio de uma empresa para a obtenção do selo passou nesse período de R$ 1,1 mil para R$ 6 mil. Metade do valor arrecadado vai para o originador do crédito e os outros 50% remuneram a plataforma e o sistema de distribuição.

“Nossa plataforma inventaria, quantifica, valora e coloca no mercado as UCSs, que são, na verdade, os frutos da conservação das florestas em áreas de reserva legal e APPs (Áreas de Preservação Permanente). É uma commodity do produtor”, diz.

Segundo ela, as UCSs, também chamadas de crédito de floresta, são geradas sempre pelo serviço prestado e aferido no ano anterior. De acordo com o tamanho da área conservada, da localização e do volume de carbono estocado, o produtor recebe um determinado número de UCSs. Um hectare preservado no arco do desmatamento na Amazônia, por exemplo, pode render ao produtor 1.600 UCSs. Na região de Cerrado, vale 700 UCs. Segundo a CEO, já estão inventariados mais de 700 mil hectares de floresta e cerca de 1.000 produtores de várias regiões, incluindo Sudeste e Nordeste, estão na fila para aderir ao programa.

Origem

Maria Tereza conta que o BMV nasceu em 2007 de um movimento de produtores rurais da Amazônia interessados em transformar a conservação obrigatória de suas áreas (e não apenas das terras excedentes) em riqueza. “O produtor rural produz soja, milho, boi, mas renuncia à receita para conservar florestas em sua propriedade e tem direito de receber por isso. O pagamento também é uma forma de criar condições para ele permanecer na terra”, diz a economista, que é da terceira geração de uma família de pecuaristas da região do Xingu (PA).

Ela afirma que os primeiros créditos de floresta, bem antes da criação da Plataforma Tesouro Verde, foram comprados por clientes da Inglaterra, Suíça, Itália e Alemanha. No Brasil, os primeiros clientes foram um laboratório e uma indústria de caminhões que adquiriram os créditos em 2008 de uma forma voluntária para colaborar com a conservação de florestas.

“Estava no auge a discussão da Convenção do Clima. Teve gente que disse que ninguém iria pagar ao produtor rural por conservar aquilo que era obrigatório por lei. A gente provou que isso não era verdade e teve até audiência no Senado para marcar o pagamento dos créditos. Na época, era apenas um ganho de imagem. Hoje, as empresas qualificadas com o selo da Plataforma Tesouro Verde têm um certificado digital de boas práticas de ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança)."

A economista diz que o projeto de lei que criou a política nacional de pagamento por serviços ambientais sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro deste ano veio dar visibilidade a algo que o BMV já faz. “Mas ainda falta garantir clareza e acessibilidade para produtores, empresas e instituições. Acredito que a grande vocação do Brasil, além de produzir alimentos, é conservar florestas. O produtor rural é um aliado da conservação e esse protagonismo tem que ser mostrado ao mundo.”

Produtores

Edward Vilela, pecuarista em São José do Rio Claro (MT) desde 1975, diz que aderiu ao BMV em 2008 para compensar o fato de só poder explorar 20% dos 11.600 hectares de sua fazenda, onde ele só chegava de barco. “O mundo todo fala em desmatamento na Amazônia. No Brasil, temos o Código Florestal mais rigoroso do mundo. Tenho 9.980 hectares preservados e só agora comecei a receber alguma renda por essa área. O crédito de floresta virou uma commodity para nós com a validação do PSA pelo governo.”

Vilela, mineiro de Três Pontas e da terceira geração de uma família de produtores rurais, não revela quanto já recebeu da BMV e diz não saber o potencial de sua área, mas calcula que, se fosse arrendar a área para soja, ganharia o equivalente a 14 sacos por hectare por ano. “Se meus créditos renderem isso no futuro, já está muito bom”, diz o pecuarista que acumula 8,6 milhões de créditos de floresta. Ele diz que, com a valoração, o maior interessado na preservação ambiental é o próprio produtor. “Por que vou derrubar, se posso ganhar dinheiro com a floresta em pé?”

Hiones Vicentin, dono de uma fazenda de 2.600 hectares em Nova Maringá (MT), diz que seu pai, Hiones Valentin, aderiu ao projeto do BMV  há 12 anos na certeza de que manter a floresta em pé um dia iria render muito mais do que o plantio de soja ou a criação de gado. A família abriu apenas 300 hectares para o plantio de seringal, embora tivesse autorização para desmatar metade da área.

“Sempre procuramos uma forma de receber por essa conservação da mata, que gera gastos, como a contratação de patrulhas para combater incêndios. Recebemos até agora um valor muito pequeno, mas confiamos no ecossistema do BMV.” A família tem 2 milhões de créditos de floresta. Vicentin também faz a conta do valor que poderia ganhar se plantasse soja. “Se eu tivesse arrendando para a soja os 1.100 hectares aprovados, ganharia 12 mil sacas por ano. Se produzisse a soja diretamente, teria lucro de 25 mil sacas por ano.”

Amapá

A parceria do BMV com o Amapá em 2018 foi ratificada por uma lei estadual que instituiu o Programa Tesouro Verde no Estado e criou ativos ambientais. A partir de junho daquele ano, o governo passou a disponibilizar uma série de incentivos públicos para empresas e instituições ingressarem na chamada “economia verde”. O Estado também é originador de créditos de floresta pelas áreas conservadas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do rio Iratapuru, de 806 mil hectares, eleita pela organização não governamental Fundo Mundial da Natureza (WWF) uma das áreas importantes de conservação na Amazônia.

O Santander foi uma das instituições que aderiu ao programa de conservação de florestas no Amapá por meio da comercialização de ativos ambientais. O banco firmou parceria com o governo estadual em janeiro deste ano para ter o selo de sustentabilidade da plataforma e passou a oferecer, em todo o país, benefícios aos clientes que aderirem ao selo, que incluem reduções em pacotes de tarifas e pagamentos de boletos, carência de seis meses da tarifa mensal da conta corrente e condições diferenciadas na contratação de empréstimos.

“O Santander acredita que existem alternativas eficazes para promover o desenvolvimento sustentável da região amazônica e o Programa Tesouro Verde é um bom exemplo do que podemos alcançar quando os setores público e privado se unem em busca de soluções”, disse Paulo César de Lima Alves, superintendente-executivo da Rede Norte do Santander Brasil.

Outra grande empresa que recebeu o selo foi a Mina Tucano, que explora ouro no município de Pedra Branca do Amapari, a 200 km da capital, Macapá. A mina é subsidiária da Great Panther Mining Limi, do Canadá. Raimundo Rocha, coordenador de Meio Ambiente e Arqueologia da mina, diz que o selo é o primeiro passo para atestar que a empresa, que busca a certificação do ISO 14001, investe em proteção ambiental. Com área total de 6.600 hectares e 1.300 colaboradores, a Tucano adquiriu 2.864 créditos de floresta.

Sebrae

O BMV fechou outra parceria importante com o Sebrae do Mato Grosso, que mantém um Centro de Sustentabilidade em Cuiabá com arquitetura inspirada nas ocas indígenas dos povos do Xingu. Em dezembro de 2020, a instituição fez um projeto-piloto de certificação com o selo Tesouro Verde direcionado a 35 pequenas empresas do Estado do setor de turismo, alimentação e produção de leite. Segundo Marisbeth Gonçalves, analista de negócios do Sebrae em Cuiabá, o selo representa a oportunidade de um novo modelo de negócios totalmente alinhado com as metas globais para sustentabilidade do planeta. O Sebrae investiu R$ 484,3 mil no projeto, que representou 1.779 tCO2e.

A pousada Aymara Lodge Pantanal, em Poconé (MT), foi uma das beneficiadas pelo projeto do Sebrae. Lisa Canavarros, a proprietária, diz que a obtenção do selo Tesouro Verde trouxe uma valorização maior aos serviços da pousada, que já tem foco na preservação da natureza. “Com o selo, mostramos aos nossos clientes que é possível gerar emprego, renda, qualificar a mão-de-obra e ainda preservar a natureza.”

As empresas certificadas com o selo não se restringem à região Centro-Norte. Com sede na capital paulista e operação em todo o país, a Ecoassist, empresa de descarte ecológico, também aderiu ao selo Tesouro Verde no ano passado. “Nosso serviço já é voltado para preservação do meio ambiente, mas sabemos que nosso trabalho de logística reversa polui. Pesquisei muito as empresas que trabalham com iniciativa de preservação ambiental, mas há muitos amadores no mercado. Fechei com a BMV por ser um programa certificado, reconhecido no mercado e com tecnologia de blockchain”, diz o diretor-geral Eber Souza.

A Ecoassit, que tem entre seus clientes 30 empresas de grande porte do setor de seguros e assistência, fez contrato mensal com a BMV para a compra de créditos de floresta compensadores da sua logística, que inclui cerca de 4.000 viagens por mês para coleta de móveis, eletrodomésticos e outros objetos para descarte em todo o país, sendo 80% nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. “Com o selo vamos comunicar aos nossos clientes que seus produtos foram descartados de forma ecologicamente correta.”